segunda-feira, 28 de março de 2011

EM NOVEMBRO

Quando dois gênios colidem (ainda que por força maior) o resultado é um universo de imagens.
Poema desentranhado de uma crônica de Carlos Drummond de Andrade sobre Cecília Meireles.
Primeiro o poema. Em seguida - a crônica.


POEMA DESENTRANHADO:

Em novembro


Cecília apareceu em novembro e
desapareceu em novembro.
Cecília, a deusa. Mulher Bela?
Sim foi mulher bela. Grande poeta?
Claro, foi grande poeta.
mas principalmente ... deusa!
Pousou entre nós por uma condescendência especial.
Viveu em nossa vida,
fez tudo para assumir aparentemente
condição humana.
Cecília, não era Cecília
era a imagem que ela se dignava usar,
um estar não estando,
presença desligada, extremamente curiosa
de coisas, seres, caminhos, costumes.
Julgava sem azedume e sem ilusão.
Uma partícula mais de inefável
e seria o encantamento puro.
Deusa em novembro.
Em novembro veio, em novembro se foi.
       
(Poema desentranhado de uma crônica de C.D.A.)


Deusa em Novembro.

            Acontece que Cecília apareceu em novembro e desapareceu em novembro. É hora de  Lembrar Cecília, a deusa. A qualificação parece exagerada? Foi a melhor que encontrei, depois de muito meditar sobre Cecília. As outras não servem para caracterizá-la bem. Mulher bela? Sim, foi mulher bela. Grande poeta? Claro, foi grande poeta. Mas foi principalmente.. deusa.
            Pousou entre nós por um condescendência especial, guardando distância, serena, às vezes sorridente (ah, o sorriso olímpico de seus olhos verdes), mas quem disse que o sorrir dos deuses é promessa de comunhão com os homens? Decerto Cecília viveu a nossa vida, provou dos nossos pratos, deu aula a crianças, conheceu ministros em recepções, considerou o horário dos trens, assinou papéis. Fez de tudo que era necessário fazer para assumir aparentemente condição humana, com direito a carteira de identidade. Mas, se observássemos melhor, sentiríamos que tudo isso eram recursos periféricos, menos para dissimular sua exata natureza, do que para compatibilizar com ela nosso cotidiano pedestre. Não obstante, confessava-se por enigmas: "Sou a passagem da seta /  e a seta em cada momento."  Declarou-se "pastora de nuvens, com a face deserta". Muitos não atinaram com o sentido de suas palavras. A maioria, fascinada pelos luxuosos jogos musicais do que ela dizendo, dizendo e fugindo, fugindo e parecendo estar perto, não percebeu que Cecília não era Cecília, era a imagem que ela se dignava usar, como um dos duzentos vestidos de todas as fases de sua passagem entre nós, que conservava sacralmente em seus armários do Cosme Velho.
            Eu por mim nunca me enganei. Foi ler seu primeiro poema, ver seu retrato natural jovem, e iluminar-me com a verificação. E há muito, muito tempo, conheci um rapaz que vivia de amá-la em cartas. Era funcionário da E.F. Oeste de Minas e já morreu. Não há indiscrição na notícia: a maior glória do rapaz ficou sendo a de se ter apaixonado por uma deusa que jamais participaria de sua existência. Não precisaria fazer mais nada para que eu o admirasse por toda a vida. Ao revê-lo, idoso e prostrado, respeitava nele o mortal que por instantes se abrira as portas da percepção.
            Os problemas criados pelo comércio com os homens não são fáceis de resolver. Os deuses submetem-se a nós, ao elegerem domicílio na Terra. Abrindo mão de seus poderes, sofrem os dramas da competição, da incompreensão, da injustiça e da ignorância. Vi esta deusa preocupada com o rumo de negócios mesquinhos, que envolviam malícia e grosseria, e perturbavam sua maneira de estar no mundo: um estar não estando, presença desligada, extremamente curiosa de coisas, seres, caminhos, costumes (de que sabia extrair a sutil notação poética, em referências de turista celeste), mas guardando-se de intervir como pastora de gentes. Julgava sem azedume e sem ilusão. Diante de um coro de jovens insofridos, que se auto-antologiavam com suficiência e método publicitário, falou-me, certa vez:
-         Cuidam da sobrevivência, antes de terem vivido.
Seu problema não seria o de sobreviver nem o de viver. Mas o de assegurar o equilíbrio entre o inalienável ofício de deusa, e o de habitante eventual da Terra. Tôda a sua poesia visou a essa composição. Uma partícula mais de inefável, e seria o encantamento puro, melodia inacessível ao ouvido contingente, memória de estados psíquicos e de acuidades sensoriais que o vulgo não saberia captar. No justo limite entre a linguagem e o sonho, porém, ela infundiu às palavras o sopro mais significante.
            Era uma deusa, disto estou convencido, e só não lhe confidenciei minha certeza porque certos mistérios não se revelam. Uma bela mulher é mais do que mulher. Um admirável poeta é mais do que poeta. Cecília Meireles foi as duas entidades e uma terceira, de explicação impossível. E em novembro veio, em novembro se foi. Deusa em novembro.

Bibliografia:

ANDRADE, C. D. de. O poder ultra jovem. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1973.